A (Des)Conformidade do IOF com o Sistema Constitucional Tributário Brasileiro: Função Extrafiscal vs. Caráter Arrecadatório
Em tempos de crise fiscal e econômica, as mudanças repentinas no cenário tributário viram rotina — e nem sempre agradam os contribuintes. Um bom exemplo é o recente aumento do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) proposto pelo Governo Federal para incidir sobre operações de crédito realizadas por empresas, que passou de 1,88% para 3,95% ao ano, conforme os Decretos 12.466/2025 e 12.467/2025. Diante disso, surge uma pergunta essencial: afinal, qual é a verdadeira função do IOF?
Por definição constitucional (art. 153, inciso V), o IOF é um imposto federal que incide sobre operações típicas de crédito como empréstimos, câmbio, seguros e investimentos. Mas o que o diferencia de outros tributos é seu papel extrafiscal: ele existe principalmente para ajudar o governo a regular a economia, controlando, por exemplo, o consumo, o crédito e a circulação de moeda, e não para gerar receita em si. Essa característica inclusive permite que o Executivo altere suas alíquotas por decreto, o que dá ao governo uma grande flexibilidade para as alterações de sua alíquota diante das mudanças econômicas.
É natural que, como qualquer imposto, o IOF também arrecada dinheiro para os cofres públicos. Mas essa arrecadação deveria ser uma consequência secundária, e não o objetivo principal. Quando o governo decide elevar consideravelmente as alíquotas do IOF e expandir sua incidência com o único intuito de arrecadar mais, ele passa a distorcer a função original do imposto, que deixa de ser um instrumento de regulação e passa a ser tratado como um mero mecanismo de arrecadação.
Na prática, isso representa uma quebra da lógica constitucional do sistema tributário. O IOF está sendo usado fora do seu propósito e, por isso, caminha em desconformidade com os princípios que regem a tributação no Brasil. Em vez de servir como ferramenta para orientar a economia, o imposto acaba penalizando empresas e cidadãos com aumentos injustificados, ferindo a confiança, a segurança jurídica e o equilíbrio previsto pela Constituição.
Essa peculiaridade do IOF — de ser um imposto pensado para regular a economia e não para fins arrecadatórios — justifica a flexibilidade concedida ao Executivo, como a possibilidade de alterar alíquotas por decreto, dispensando essa majoração do cumprimento do princípio da anterioridade. Mas essa exceção tem finalidade clara e não pode ser desvirtuada.
Essa liberdade, contudo, não é absoluta, nem pode ser usada de forma arbitrária. A Constituição condiciona essa flexibilidade a limites estabelecidos em lei específica — no caso, a Lei nº 8.894/1994. Segundo o artigo 2º dessa norma, o Poder Executivo só pode alterar as alíquotas do IOF se houver objetivos claros de política monetária ou fiscal, ou seja, é preciso justificar tecnicamente o motivo da alteração.
O aumento do IOF, sem explicações adequadas e sem vínculo com a regulação econômica, servindo apenas como forma de arrecadar mais para cobrir déficits ou financiar políticas públicas traz consequências graves. Como o IOF não precisa seguir o princípio da anterioridade, sua majoração pode entrar em vigor imediatamente. Se for usado com finalidade arrecadatória, ele viola o direito dos contribuintes de se planejarem financeiramente, comprometendo a segurança jurídica e a previsibilidade tributária — fundamentos essenciais para o ambiente de negócios e para a confiança no sistema.
Em outras palavras, o IOF só pode ser livre das “amarras” legais por causa de sua função específica de regular a economia, e não como um atalho para elevar a arrecadação sem o devido processo legislativo. Quando o Executivo ignora essa regra, ultrapassa os limites constitucionais e transforma uma ferramenta técnica em um peso inesperado no bolso do contribuinte.
Portanto, o recente aumento do IOF não apenas impacta diretamente empresas e cidadãos, como também acende um alerta sobre o uso indevido de instrumentos tributários.
Além do aumento direto das alíquotas, é fundamental destacar outra mudança relevante: a ampliação da incidência do IOF sobre as chamadas operações de risco sacado. O novo decreto passou a tributar essas operações com base em uma simples classificação genérica como “operações de crédito”, sem apresentar uma justificativa técnica mais aprofundada.
Essa interpretação, no entanto, desconsidera que o IOF não se aplica a toda e qualquer operação de crédito, mas apenas àquelas expressamente previstas em lei. Ao adotar esse entendimento ampliativo, o governo acaba confundindo os limites da função arrecadatória com os da função regulatória.
Assim, ao adotar uma postura que prioriza a arrecadação em detrimento da legalidade, o Estado não apenas compromete a previsibilidade do sistema, mas também mina a segurança jurídica e enfraquece a confiança no sistema tributário brasileiro. Nesse cenário, não está em jogo apenas a função do tributo — está em risco a própria legitimidade da relação entre o fisco e o contribuinte.