LGPD

O que a LGPD tem a ver com o caso do “Tio Paulo”?

O no mínimo impressionante caso do “Tio Paulo” chocou o país recentemente. O que parece ser uma cena digna de filmes se tornou realidade.

Por Adib Feguri, Advogado

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30/04/2024 15h28

Um idoso, Paulo Roberto Braga, foi levado morto por sua sobrinha, Erika Souza Vieira Nunes, a um banco para tentar sacar um empréstimo de R$ 17 mil.

O caso ainda ganhou repercussão nacional, vídeos gravados durante o ocorrido circularam nas redes sociais, e em diversos casos sem qualquer restrição ou tarja no rosto do falecido.

Os compartilhamentos quase que irrestritos do caso levantaram algumas reflexões entre usuários das redes sociais sobre questões legais, morais e éticas acerca do tema, sobretudo as possíveis violações a proteção dos dados pessoais (Imagens, Vídeos), e até da própria dignidade do falecido.

Mas afinal de contas, o que o caso do “Tio Paulo” tem a ver com a LGPD?

A Lei nº 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados)[1], tem como principal objetivo proteger os direitos fundamentais de liberdade e privacidade, bem como o livre desenvolvimento da personalidade das pessoas naturais. Ela estabelece regras para o tratamento de dados pessoais, incluindo aqueles realizados nos meios digitais, por pessoas naturais ou jurídicas, sejam elas de direito público ou privado.

O tema ganha relevância no caso quando analisamos o conteúdo e a forma como os imagens e vídeos foram divulgadas nas redes sociais, tendo em vista que a depender do teor dos materiais compartilhados, podemos estar diante de operações de tratamento de dados pessoais sensíveis (ou será que não?).

Apesar de ser um assunto muito específico, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) já se posicionou sobre o tema em 2023, em sua Nota Técnica nº 3/2023/CGF/ANPD[2], sobre consulta da PRF acerca da possibilidade que criação de Memorial destinado a homenagear servidores já falecidos.

Em análise ao tema, a autoridade, com subsídios da Coordenação-Geral de Normatização, se posicionou no sentido de não aplicação da LGPD para informações pessoais de falecidos. Parece muito errado, né?!

Não à toa, os termos “personalidade”, “privacidade” e “pessoas naturais” foram supracitados em negrito, isso porque possuem extrema importância para a explicação desse posicionamento

O art. 5º, V, da LGPD, define o titular de dados pessoais como a pessoa natural a quem se referem os dados pessoais que são objeto de tratamento, o que pressupõe a sua incidência no âmbito de tratamento de dados pessoais de pessoas naturais.

O importante detalhe sobre esse ponto é que o Código Civil[3] estabelece em seu art. 6º, que a existência da pessoa natural termina com a morte. Assim, a proteção post mortem dos direitos da personalidade dos titulares de dados pessoais não estaria, então, abarcada pela LGPD, pois não mais há desenvolvimento de personalidade.

Mas como fica o respaldo aos direitos envolvidos nesse caso?

Apesar do entendimento de não aplicabilidade da LGPD no tema, cabe a nós avaliar o que entende o macrossistema sobre os Direitos de Personalidade.

Quando analisamos o que diz a Constituição Federal e o Código Civil, entendemos que os Direitos de Personalidade de abrangem, dentre outros, a privacidade, intimidade, honra, imagem e nome do indivíduo, caracterizados como intransmissíveis, irrenunciáveis, indisponíveis e oponíveis.

Os direitos nesse caso possuem tamanha relevância que mesmo após o falecimento indivíduo, a tutela jurídica dos direitos de personalidade do falecido é mantida, sendo garantido a terceiros a legitimidade para requerer a cessão de possível ameaça ou lesão aos diretos afetados, nos termos do artigo 12, do Código Civil.

A jurisprudência brasileira reconhece a importância dos direitos da personalidade mesmo após a morte. Por exemplo, em um caso emblemático julgado pela 10ª Câmara Cível do TJ-RS[4], o marido viúvo obteve proteção contra a inscrição indevida do nome da falecida em órgãos de proteção ao crédito após seu falecimento. Isso demonstra que a garantia de direitos post mortem é prevista e reafirmada dentro do ordenamento jurídico.

No entanto, há situações em que a jurisprudência se posiciona de forma contrária. Por exemplo, no julgamento do Habeas Corpus n° 86.076/MT[5], o STJ considerou não ser ilícita a prova obtida do celular de uma pessoa falecida, mesmo sem autorização judicial, argumentando que não havia privacidade a ser tutelada. Esse aparente antagonismo entre proteção e interpretação da autoridade gera preocupações quanto à privacidade dos titulares falecidos.

As diferentes  decisões e entendimentos envolvidos no tema trazem à tona um aparente antagonismo entre o que reconhece o macrossistema jurídico e como se posiciona a ANDP, dado que a proteção de dados pessoais integra o rol de direitos da personalidade, por dizer respeito à privacidade dos titulares, mas, se interpretada de forma avulsa, a partir do entendimento da autoridade, afasta a proteção dos titulares falecidos.

Nessa esteira, o tema acaba criando alguns questionamentos e até inseguranças em relação a limitação do direito de personalidade e não aplicabilidade da LGPD no caso do falecido. A titulo de exemplo, como fica o tratamento de dados pessoais com base no consentimento? Um agente de tratamento que já possui as informações pessoais de um titular pode mantê-las e utiliza-las como quiser após sua morte, caso ele não a revogue antes?

Ao não abordar explicitamente a aplicação da LGPD ao tratamento de dados pessoais de pessoas falecidas, o legislador deixou espaço para dúvidas na interpretação da Lei. Agora cabe à ANPD preencher essa lacuna e garantir que não haja interpretações conflitantes ou contraditórias pelo Poder Judiciário, evitando assim insegurança jurídica.

É possível ainda notar que muito embora não abordado na LGPD, o posicionamento da ANPD acompanha a previsão do regulamento europeu de proteção de dados pessoais, General Data Protection Regulation (GDPR), uma das principais normas sobre a proteção de dados pessoais no mundo. O diploma europeu, é categórico ao estabelecer que o regulamento não é aplicável aos dados pessoais de pessoas falecidas, prevendo, inclusive, que compete a cada estado-membro a criação, se assim desejar, de normas específicas sobre este tratamento

Considerando que esse é um ponto ainda pouco debatido, mas que tende a se tornar mais frequente devido à grande quantidade de dados pessoais disponíveis em meios físicos e digitais, é fundamental que todos os responsáveis pelo tratamento de dados estejam atentos a essa questão. A exposição indevida ou violação dos dados de pessoas falecidas pode configurar uma violação dos direitos da personalidade, sujeita a análise judicial, quando aplicável.

Portanto, os agentes de tratamento devem buscar consultorias ou alocar pessoal adequado em caráter preventivo para garantir a conformidade com a LGPD, reduzindo significativamente os riscos de questionamentos futuros sobre o tratamento de dados.


[1] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm

[2] https://www.gov.br/anpd/pt-br/assuntos/noticias/NotaTecnica3CGF.ANPD.pdf

[3] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm

[4] Apelação Cível, Nº 70075449405, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, relator: Jorge Alberto Schreiner Pestana, Julgado em: 01-03-2018

[5]  (STJ, RHC nº 86.076/MT, 6ª T., relator ministro Sebastião Reis Júnior, j. 19.10.2017, DJe 12.12.2017, Informativo nº 617)

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