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Artigo: A Pandemia e o dever do Estado indenizar empregados demitidos – Uma análise sob a ótica do artigo 486 da CLT e Fato do Príncipe

01/04/2020 18h08

Diante do cenário de pandemia que estamos vivendo, há uma dicotomia entre a saúde e a economia envolvida de forma latente, e o trabalho acaba sendo diretamente afetado, necessitando de medidas urgentes entre os empregadores e empregados. Saiba quais são as dúvidas mais comuns envolvendo abrangência e aplicação a respeito do artigo 486 da CLT, resgatado pelo Presidente da República em um de seus pronunciamentos e que trata a respeito da possibilidade do Estado ser responsabilizado pelo pagamento da rescisão do empregado

Guilherme Gut Sá Peixoto de Castro, sócio
[email protected]

Fernando Beu, advogado trabalhista
[email protected]

Em meio à pandemia da COVID-19, o ordenamento jurídico está sendo testado como nunca visto antes, seja pelas normas editadas de forma emergencial, seja pelos conflitos de normas restritivas emanadas diariamente pela União, Estados e Municípios, seja pelo resgate de normas não usuais que se aplicam ou que talvez a elas caibam alguma adaptação para essa situação excepcional.

É certo que na esfera trabalhista isso não é diferente. Ao contrário, como existe uma dicotomia entre a saúde e economia envolvida de forma latente na pandemia, o trabalho (economia) é diretamente afetado, ensejando medidas urgentes entre os empregadores e empregados, sob pena de ocasionar desemprego, fome, violência, entre outras ocorrências.

Como adicional a esse caldeirão jurídico, as disputas políticas se tornaram gigantescas, criando-se os defensores da saúde e os defensores da economia, não havendo equilíbrio nas ações e união de esforços que são exigidos para o enfrentamento dessas crises. Sim, crise no plural, posto que em cadeia, atinge não somente a saúde, como diversas áreas, até porque temos que sem saúde não há economia e sem economia não há saúde, e sem os dois, nada há.

Por ocasião dessas disputas políticas, o Sr. Presidente da República resgatou um dispositivo legal (artigo 486 da CLT) ao afirmar que os prefeitos e governadores, adeptos ao fechamento temporário de estabelecimentos, poderão ser responsabilizados pelos encargos trabalhistas nas dispensas decorrentes, o que teve grande repercussão nacional.

Para a felicidade, ou infelicidade do leitor, não entraremos no mérito político. Não encontraremos, também, a solução desses problemas.

Vamos nos ater ao estudo do dispositivo legal que determina que o governo responsável pela paralisação ou término das atividades pelo empregador, será compelido a pagar indenização ao empregado dispensado, assim como estabelecido no artigo 486 da CLT.

As dúvidas mais comuns que surgem são: [1] o que abrange a indenização e [2] se é aplicável o referido dispositivo?

O primeiro ponto é que o artigo 486 da CLT está elencado no capítulo da rescisão do contrato de trabalho. Logo, a indenização a que se refere o artigo 486 da CLT são as verbas decorrentes da rescisão, quais sejam, as verbas rescisórias, inclusive multa de 40% sobre o FGTS, apesar de haver corrente que afirma que seria essa multa de 20% sobre o FGTS, por se tratar de força maior.

Não é razoável que se divida a multa rescisória do empregado por ato praticado pelo Estado, sendo aparentemente mais certo que o Estado seja responsável pela multa no importe de 40% sobre o FGTS. Com relação ao aviso prévio, por se tratar de evento imprevisível, a jurisprudência majoritária, com acerto, entende esse ser indevido.

O segundo ponto, com relação à aplicabilidade, é que a dispensa ocasionada seja inevitável, decorrente, assim, de força maior (artigo 501 da CLT), e, no caso específico, pelo “fato do príncipe”, ou seja, motivada por ato da União, Estados ou Municípios no fechamento temporário ou definitivo do estabelecimento empresarial.

Assim, a primeira excludente é que se o empregador possuir condições de manutenção do empregado, mesmo com o fechamento temporário do estabelecimento, não é possível a invocação do artigo 486 da CLT.

Ainda, é de análise que o Estado também pode praticar atos motivados por força maior. Nesse aspecto, duas teorias de responsabilidade se destacam, a teoria do risco integral e a teoria do risco administrativo. A teoria do risco integral não admite excludentes, ou seja, o Estado deve responder por qualquer dano, ainda que não tenha dado causa. Já a teoria do risco administrativo admite causas de excludentes, como caso fortuito, força maior e culpa exclusiva da vítima.

O nosso ordenamento jurídico adota a teoria do risco administrativo (artigo 37, § 6°, da Constituição Federal).

Então, pode-se considerar que a pandemia seria uma força maior a isentar o Estado pelas dispensas ocasionadas pelo seu ato de fechamento temporário de estabelecimentos? A resposta é sim.

Para o cenário atual, é aplicável o artigo 486 da CLT? A questão é subjetiva, depende de análise de caso a caso, sopesando, principalmente, a dicotomia saúde e economia.

A história sobre a pandemia ainda está sendo contada, e até o presente momento estamos em capítulo deste triste livro que não nos permite enxergar o seu desfecho.

E isto quer dizer que, até o presente capítulo desta história, não há espaço para concluir que as medidas adotadas pelas autoridades municipais, estaduais e federais foram atos discricionários ou mera escolha favorável à Administração Pública. Ao contrário, o contexto atual tão somente indica que, assim como quase a totalidade de outros países, as medidas de contenção, isolamento e quarentena são necessárias no atual estágio, conforme se nota de forma uníssona dos maiores especialistas em saúde e sobretudo de forma bastante enfática pela OMS – Organização Mundial da Saúde.

Portanto, estamos diante de uma paralisação temporária do trabalho para atividades não essenciais cujo estado de calamidade pública e força maior são indiscutíveis, o que nos leva à indicação de que não é um ato governamental em si que impede o trabalho, mas sim os reflexos da própria pandemia que obriga as autoridades a adotar tais medidas.

A evolução deste cenário dependerá de como serão os próximos meses em termos de riscos à saúde, quando então o quadro poderá ganhar outra roupagem, caso as autoridades ajam em descompasso entre estágio do controle da pandemia e a manutenção de medidas restritivas às atividades econômicas que já poderiam ser retomadas.

Somente na análise casuística é que se poderá obter as respostas, pois dependerá de se verificar fatores concretos como (i) qual é a atividade econômica da empresa, (ii) a real impossibilidade ou não de continuação de suas atividades, (iii) a demonstração de incorreta classificação de seu segmento como não essencial, (iv) a análise efetiva de qual ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou ainda lei / resolução que impedem o regular funcionamento da empresa e (v) e também se as medidas apresentadas pelas autoridades para mitigar os impactos nas relações trabalhistas não permitiram evitar a rescisão.

Quanto ao Poder Judiciário, não temos precedentes que possam ser utilizados para análise preditiva de como se comportariam os juízes e tribunais, considerando o ineditismo da situação em que vivemos.

É bem possível que existam decisões em primeiro grau reconhecendo sim o fato do príncipe, porém a tendência que se apresenta ao menos neste momento, com base no cenário atual, é o de que prevaleça nos tribunais a ausência de responsabilidade do Estado, até mesmo diante de um efeito financeiro devastador aos cofres públicos que teria a aplicação do artigo 486 de forma indiscriminada, somado ao entendimento iterativo de que o risco do negócio é do empregador, não do empregado.

Para arrematar, a conclusão final é de que, via de regra, a resposta atual para a invocação do artigo 486 da CLT é de não responsabilização do Estado, devendo cada caso concreto ser analisado com suas circunstâncias específicas para que possa ser aferido alguma possibilidade de exceção a esta provável direção, e que este tema seja atualizado de acordo com o cenário dos próximos meses, visto que atualmente a imprevisibilidade é o que melhor define o atual momento em que vivemos.

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